segunda-feira, 22 de abril de 2013

EU, VOCÊ E O PASTOR FELICIANO



EU, VOCÊ E O PASTOR FELICIANO
Paulo da Rocha Dias*
 
Toda esta polêmica envolvendo o Deputado Pastor Marco Feliciano nos leva a pensar em nossas relações com o outro, com o diferente, bem como nos aspectos que compõem a nossa própria identidade.
A última descoberta dos internautas que muito se ocupam com a vida dos outros foram os comentários nada agradáveis feitos pelo Pastor a respeito do sucesso da canção “Sozinho” de Caetano Veloso. E para discutirmos a nossa relação com o outro, o diferente e a nossa identidade pessoal vale muito um verso de uma outra canção deste baiano maravilhoso: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Em face do outro, há um narcisismo mundial, estadual, municipal e individual. Não conseguimos nos ver quando olhamos para o outro e isso profundamente nos descontenta e incomoda a todos. Não somente ao deputado pastor ou pastor deputado, como queira.
Em termos mundiais, o Ocidente estabeleceu mais ou menos na mesma época dois grandes encontros com o outro. Isto aconteceu quando o europeu se viu em face aos povos do Oriente, particularmente os chineses e em convívio com os povos da América e África.
No primeiro caso, o encontro provocou imediatamente um afastamento entre Oriente e Ocidente que durou séculos, o que acarretou imensurável prejuízo cultural para os dois lados. E a aproximação que hoje acontece tem finalidades puramente comerciais.
No segundo caso foi um desastre. Os europeus trataram imediatamente [de] ou eliminar ou subjugar o outro. Nunca conseguiu ver, até hoje, no índio e no africano o seu próprio rosto, o rosto da humanidade. O massacre e a subjugação por meio da escravidão eram amplamente justificados pelo sistema religioso da época. Se os negros e ameríndios trabalhavam, faziam-no como cavalos e bois de canga. Se eram eliminados, desapareciam como morrem as galinhas. Afinal, afirmava-se que negros e ameríndios não tinham alma, o principal elemento de humanização.
Ora, o que acontece em termos mundiais, acontece também em termos pessoais. As coisas não mudaram muito nos últimos mil anos. O outro, o diferente, nos incomoda, tira-nos da zona de segurança e de conforto em que nos aportamos. O nosso instinto é, senão eliminar o outro, pelo menos subjugá-lo, ajustá-lo, fazê-lo nossa semelhança e espelho.
Em tempos de liberdade, não conseguimos entender e apreciar a liberdade. Incomoda-nos Cuba, tão distante. Incomoda-nos Hugo Chávez, mesmo depois de morto. Incomoda-nos o outro, bem ao nosso lado, porque tem uma cor diferente. Incomoda-nos aquele rapaz ou aquela moça que tem uma opção sexual diferente da nossa. E incomoda mesmo quando sabemos que, por se tratar de minorias, não há nenhuma ameaça, nem de longe, à nossa zona de segurança e conforto.
Não foi à toa que desde uns vinte anos a Sociologia colocou novamente em voga estas duas palavras: alteridade e identidade. Desde então, inúmeros estudos a respeito das interações humanas nestes dois campos foram realizados. No entanto, as descobertas e redescobertas dos cientistas do convívio humano pouco mudaram no comportamento do grosso da população. Por termos pouca consciência de nós mesmos, ou seja, por termos uma identidade frágil e desenraizada não conseguimos compreender o outro quando diante ou distante de nós.
Esta novela de horror que temos assistido na Comissão de Direitos Humanos e Minorias – e é bom frisar a palavra minorias – da Câmara dos Deputados não é uma questão meramente política ou religiosa. É algo mais profundo e grave. É um fenômeno que está na base das relações humanas. O que está em jogo aqui é a tolerância, o respeito e a possibilidade de se enriquecer com os aspectos diferentes que o outro nos traz.
A questão política e a questão religiosa estão servindo neste caso apenas para despertar o povo brasileiro para algo que vem nos assolando desde algum tempo: a violência contra as minorias. Não apenas contra homossexuais e negros. Todos lembramos do índio pataxó queimado em Brasília, da empregada doméstica espancada no ponto de ônibus no Rio de Janeiro, do domador de cães morto na Praça da República em São Paulo e do Tony, africano guineense, morto a pancadas no bairro Boa Esperança.
Todos estes fatos foram acumulados em nosso imaginário e agora eles saem na forma de um grande movimento de cidadania e de opinião pública. A sociedade está dividida e, amparados em justificativas religiosas, na luta do bem contra o mal, na luta em defesa da família e da tradição, o Feliciano terá a felicidade de ser reeleito com alguns milhões de votos. Mas cada indivíduo que compõe esta nação pensa, hoje, na alteridade e na própria identidade. Pensa nas relações que estabelecemos com o outro, sobretudo com o diferente.

* Paulo da Rocha Dias é jornalista, professor do Departamento de Comunicação Social da UFMT e autor do livro “O amigo do Rei: Carlos Rizzini, Chatô e os Diários Associados”.

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