EU, VOCÊ E O PASTOR FELICIANO
Paulo da Rocha Dias*
Toda esta
polêmica envolvendo o Deputado Pastor Marco Feliciano nos leva a pensar em
nossas relações com o outro, com o diferente, bem como nos aspectos que compõem
a nossa própria identidade.
A última
descoberta dos internautas que muito se ocupam com a vida dos outros foram os
comentários nada agradáveis feitos pelo Pastor a respeito do sucesso da canção
“Sozinho” de Caetano Veloso. E para discutirmos a nossa relação com o outro, o
diferente e a nossa identidade pessoal vale muito um verso de uma outra canção
deste baiano maravilhoso: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Em
face do outro, há um narcisismo mundial, estadual, municipal e individual. Não
conseguimos nos ver quando olhamos para o outro e isso profundamente nos
descontenta e incomoda a todos. Não somente ao deputado pastor ou pastor
deputado, como queira.
Em termos mundiais, o Ocidente
estabeleceu mais ou menos na mesma época dois grandes encontros com o outro. Isto
aconteceu quando o europeu se viu em face aos povos do Oriente, particularmente
os chineses e em convívio com os povos da América e África.
No primeiro
caso, o encontro provocou imediatamente um afastamento entre Oriente e Ocidente
que durou séculos, o que acarretou imensurável prejuízo cultural para os dois
lados. E a aproximação que hoje acontece tem finalidades puramente comerciais.
No segundo
caso foi um desastre. Os europeus trataram imediatamente [de] ou eliminar ou
subjugar o outro. Nunca conseguiu ver, até hoje, no índio e no africano o seu
próprio rosto, o rosto da humanidade. O massacre e a subjugação por meio da
escravidão eram amplamente justificados pelo sistema religioso da época. Se os
negros e ameríndios trabalhavam, faziam-no como cavalos e bois de canga. Se
eram eliminados, desapareciam como morrem as galinhas. Afinal, afirmava-se que
negros e ameríndios não tinham alma, o principal elemento de humanização.
Ora, o que
acontece em termos mundiais, acontece também em termos pessoais. As coisas não
mudaram muito nos últimos mil anos. O outro, o diferente, nos incomoda, tira-nos
da zona de segurança e de conforto em que nos aportamos. O nosso instinto é, senão
eliminar o outro, pelo menos subjugá-lo, ajustá-lo, fazê-lo nossa semelhança e
espelho.
Em tempos de
liberdade, não conseguimos entender e apreciar a liberdade. Incomoda-nos Cuba, tão
distante. Incomoda-nos Hugo Chávez, mesmo depois de morto. Incomoda-nos o outro,
bem ao nosso lado, porque tem uma cor diferente. Incomoda-nos aquele rapaz ou
aquela moça que tem uma opção sexual diferente da nossa. E incomoda mesmo
quando sabemos que, por se tratar de minorias, não há nenhuma ameaça, nem de
longe, à nossa zona de segurança e conforto.
Não foi à toa
que desde uns vinte anos a Sociologia colocou novamente em voga estas duas
palavras: alteridade e identidade. Desde então, inúmeros estudos a respeito das
interações humanas nestes dois campos foram realizados. No entanto, as
descobertas e redescobertas dos cientistas do convívio humano pouco mudaram no
comportamento do grosso da população. Por termos pouca consciência de nós
mesmos, ou seja, por termos uma identidade frágil e desenraizada não
conseguimos compreender o outro quando diante ou distante de nós.
Esta novela de
horror que temos assistido na Comissão de Direitos Humanos e Minorias – e é bom
frisar a palavra minorias – da Câmara dos Deputados não é uma questão meramente
política ou religiosa. É algo mais profundo e grave. É um fenômeno que está na
base das relações humanas. O que está em jogo aqui é a tolerância, o respeito e
a possibilidade de se enriquecer com os aspectos diferentes que o outro nos
traz.
A questão
política e a questão religiosa estão servindo neste caso apenas para despertar
o povo brasileiro para algo que vem nos assolando desde algum tempo: a
violência contra as minorias. Não apenas contra homossexuais e negros. Todos
lembramos do índio pataxó queimado em Brasília, da empregada doméstica
espancada no ponto de ônibus no Rio de Janeiro, do domador de cães morto na
Praça da República em São Paulo e do Tony, africano guineense, morto a pancadas
no bairro Boa Esperança.
Todos estes
fatos foram acumulados em nosso imaginário e agora eles saem na forma de um
grande movimento de cidadania e de opinião pública. A sociedade está dividida e,
amparados em justificativas religiosas, na luta do bem contra o mal, na luta em
defesa da família e da tradição, o Feliciano terá a felicidade de ser reeleito
com alguns milhões de votos. Mas cada indivíduo que compõe esta nação pensa, hoje,
na alteridade e na própria identidade. Pensa nas relações que estabelecemos com
o outro, sobretudo com o diferente.
* Paulo da Rocha Dias é
jornalista, professor do Departamento de Comunicação Social da UFMT e autor do
livro “O amigo do Rei: Carlos Rizzini, Chatô e os Diários Associados”.
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