Texto originalmente publicado no blog Coletivo Bang Mexirica
PROFESSOR DE FILOSOFIA DA UFES ENUMERA MOTIVOS PELOS QUAIS RACHEL SHEHERAZADE ERROU
O que estamos vendo por aí, quanto ao caso do menino
amarrado ao poste e à Rachel Sheherazade, é um apanhado de polêmicas, piadas,
memes e discussões sem origem nem fim. Mesmo que nenhum de nós simples
internautas sejamos mestres ou doutores, e temos nossas experiências de vida e
opiniões formadas para argumentar, a favor ou contra, algum assunto. Só que, de
vez em quando, aparece alguém que pode colocar algumas coisas em perspectiva.
Foi o que tentou o Professor David Borges, da UFES (Universidade Federal do
Espírito Santo), em um post no Facebook. Ele usou argumentos claros e replicou
pensamentos de grandes nomes da filosofia para argumentar contra a atitude de
Raquel, e dos so called justiceiros, confira:
Para quem tem dificuldade de entender o motivo pelo qual
Rachel Sheherazade recebeu tantas críticas:
1 – O pensamento dela parte de uma visão distorcida de um
filósofo chamado Thomas Hobbes (1588-1679). Resumidamente falando, Hobbes
afirmava que o ser humano em “estado de natureza” (sem uma estrutura política
que o limite) iria sempre perseguir a satisfação de seus desejos, o que
resultaria em incessantes conflitos entre as pessoas quando o desejo de um
entrasse em conflito com o do outro. Isso resultaria em uma “guerra de todos
contra todos”, e daí deriva a necessidade de um estado forte – e absolutista –
que através de sua enorme força repressiva conseguisse limitar os conflitos e
assim preservar a integridade física das pessoas – ao custo de sua liberdade. O
erro de Rachel Sheherazade nesse aspecto: Hobbes nunca defendeu que os cidadãos
seriam capazes de executar “justiça” por conta própria – pelo contrário,
considerava que a população em geral é intelectualmente incapaz para discernir
sobre questões de justiça, e que todos (sem exceção) possuem o mesmo potencial
para serem violentos e despóticos em relação aos seus pares.
2 – Quando ela fala sobre o governo ter desarmado os
cidadãos e sobre o grupo de justiceiros estar usando de “legítima defesa”, está
usando uma interpretação igualmente distorcida de outro filósofo do período moderno,
chamado John Locke (1632-1704). Locke afirmava que todo cidadão deveria possuir
meios de defender suas propriedades. Mas para Locke a PRINCIPAL propriedade de
um ser humano é seu próprio corpo, e este é inviolável – com esse argumento
Locke se opôs fortemente à tortura, à pena de morte, a castigos físicos em
prisioneiros e à escravidão como fora praticada nas Américas (ele admitia a
possibilidade de trabalhos forçados como reparação para crimes contra
indivíduos). Na verdade, para Locke o direito à propriedade material nada mais
é do que uma “extensão” dos direitos de se auto-possuir (ou seja, propriedade
sobre o próprio corpo), então os bens materiais são secundários em relação à
integridade física, que seria INVIOLÁVEL. O pensamento de Locke é a base sobre
a qual começou a ser construída a noção de direitos humanos, que pessoas como
Rachel Sheherazade – e aqueles que a aplaudem – rejeitam (mesmo sem saberem do
que se trata).
3 – Quando ela defende que alguém seja capaz de
determinar quem é culpado ou inocente, julgar qual seria a pena aplicável e
executá-la, está violando um dos fundamentos mais básicos de toda a organização
política ocidental: a divisão de poderes. Essa noção se iniciou com Locke (já
citado) mas foi aprimorada por um pensador chamado Montesquieu (1689-1755).
Para Locke, quanto mais “fraco” for o estado, menor a possibilidade dele se
tornar tirânico e abusar do cidadão (o que é uma crítica ao que Hobbes, também
já citado, defendia). Montesquieu formulou que o estado deveria, portanto, ser
dividido em três seções distintas, cada uma com função diferente: aquela que
faz leis, aquela que julga as relações entre cidadãos de acordo com as leis já
existentes, e aquela que executa as leis e os julgamentos. Aquilo que hoje
chamamos de Legislativo, Judiciário e Executivo, respectivamente. Ao defender a
atitude dos justiceiros (ou de policiais que realizam execuções sumárias –
coisa que ela também já defendeu), ela está eliminando essa divisão de poderes:
o mesmo que determina regras, julga; o mesmo que julga, executa. A
consequência, clara, é a de que alguém que faça essas três coisas ao mesmo
tempo passa a ter poder de vida ou morte sobre outro cidadão, sem
necessariamente ter preparo ou legitimidade para isso – ou seja, nada mais é do
que um déspota. E não faltam exemplos históricos disso: todas as ditaduras da
história se basearam na falta de limites entre essas três funções.
4 – Quando ela afirma que o fato do rapaz ter fugido
imediatamente ao invés de ter prestado queixa é um indício de que ele era
culpado de algo, está simplesmente sendo burra: após ser espancado, ter sua
orelha arrancada e ser acorrentado nu a um poste – pelo pescoço – alguém em sã
consciência iria permanecer no local? Ainda mais sabendo que os mesmos a quem
ele deveria reclamar poderiam fazer a mesma coisa novamente, ou podem ter sido
coniventes com o que já havia ocorrido? E o fato de que os agressores
provavelmente estavam nas redondezas? Qualquer um fugiria correndo em pânico
assim que a corrente fosse serrada.
5 – A frase “o contra-ataque aos bandidos é o que chamo
de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem estado contra um estado de
violência sem limite” é ABSURDAMENTE parecida com as frases usadas por alguns
dos movimentos mais violentos da história. Cito como exemplos a Ku Klux Klan
(que existe até hoje) e os Nazistas à época da Segunda Guerra Mundial – podem
procurar vídeos a respeito no youtube. TODOS os movimentos de “limpeza social”
se justificam afirmando que estão apenas se defendendo contra uma ameaça externa.
Inúmeros grupos terroristas islâmicos emitem exatamente o mesmo tipo de
discurso, e se justificam da mesma forma. A ditadura no Brasil também foi
instaurada para supostamente livrar o país da “ameaça” do “comunismo” – e, até
onde sabemos, deixou 20 anos de repressão, 457 mortos (confirmados) e pelo
menos mil outros “desaparecidos” políticos, além de um grande número de
exilados.
6 – Em seu discurso ela propôs que fossem jogados fora
todos os fundamentos da constituição brasileira, além de nossos códigos penal,
processual e civil.
7 – Ela não atentou para o fato de que os “justiceiros”
também cometeram vários crimes graves, e que por isso são potencialmente tão
perigosos para a sociedade quanto o homem que “puniram”.
8 – Quando falou sobre defensores dos direitos humanos,
demonstrou não conhecer SEQUER o conceito de “direitos humanos”. Ela e seus
admiradores acreditam que “direitos humanos” é o nome de alguma coisa genérica
que só aparece em casos que envolvem criminalidade, e sempre para defender a
parte “errada” da história. Desconhece, por exemplo, que é por causa do
conceito de direitos humanos que as pessoas não podem mais ser escravizadas,
que é proibido chicotear alguém para que trabalhe mais, que jornadas de trabalho
são limitadas a um determinado número de horas, que ninguém pode ser preso sem
justificativa, que todos devem ter direito a um julgamento justo e a ampla
defesa, que tortura não é aprovada como método de interrogatório, que o
governante não pode ordenar a execução sumária de alguém que não goste, que o
estado deve providenciar o mínimo necessário para a sobrevivência e a educação
das crianças, que jovens menores de idade não podem ser vendidas para casar,
que o governante não pode exigir de um casal recém-casado que a mulher passe a
noite de núpcias com ele… coisas que afetam o cidadão comum, que poderia ainda
estar sendo vítima disso tudo – como já aconteceu em outros momentos
históricos.
Ou seja, a mentalidade de Rachel Sheherazade precisa
alcançar, NO MÍNIMO, o século DEZESSETE. E eu nem entrei em outros pormenores,
como os fundamentos da ética kantiana (que também é base da concepção de
direitos humanos), da ética cristã (ela alega ser cristã), dos crimes que ela
cometeu ao falar aquelas barbaridades em rede nacional (incitação ao ódio e
apologia ao crime), do fato de que a criminalidade é fruto de condições sociais
e por isso o indivíduo que se torna criminoso não tem total controle sobre sua
escolha (coisa que se sabe desde o século XIX), que o sentimento de revanchismo
pode levar a população a um “comportamento de massa” que resulte em um
movimento totalitário (fenômeno que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, mas só
foi explicado academicamente na década de 50), e assim sucessivamente.
No final das contas, quando você concorda com Rachel
Sheherazade isso diz muito mais a seu respeito do que a respeito dela.
É algo para nos fazer pensar, não? Afinal de contas, também
não dá pra endemonizar uma pessoa por todo um pensamento que vem sendo
replicado há anos de forma errada. Dá?
Fonte: Blog Coletivo Bang Mexirica
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